sábado, 18 de janeiro de 2014

[Umas e outras] Guerra santa




Por Vinícius Mahier

Vivemos num planeta absurdamente belo, com infinitos absurdos aceitáveis pela contemplação. Vivemos numa terra em que a beleza é desejada, mas proibida por princípios redigidos nos olhos dos que nunca deixaram o exílio de suas pálpebras. Não podemos mais apreciar um pôr-do-sol sem que um vendedor de realidade assalte os nossos sonhos. Não podemos escrever poesia sem que se insurjam os que preferem a folha em branco. Não podemos fomentar alguma causa sem que apareçam mil protestos contra a mudança. Se não há sonhos, também não nos permitem uma realidade crítica. Também não se esforçam por ela.
Não podemos cantar um carinho sem que nos acusem de sentimentais, porque o afeto não está na moda e a moda é o ideal dos seus corações. Enganam por interesse, amam por interesse, abençoam por interesse, se deixam enganar por interesse próprio. Uma etiqueta vale mais que a honra porque a honra não frequenta leilões. Uma etiqueta vale mais que um verso porque o apreço à sensibilidade é inexistente ante mercadorias. Uma etiqueta vale mais porque conhece vitrines e o despego só se nobilita em valores póstumos. E perdão pelas anáforas cansativas. “Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força da repetição", já dizia Machado. Minha terceira pessoa é um eufemismo falho. Somos, sem que percebamos, todos casmurros, no pior sentido: o do desânimo, não o da obstinação.
Porque nos ostentamos como mártires quando lemos ou fazemos alguma crítica. Raramente nos reconhecemos nela por mais que nossos traços estejam ali perfeitamente esculpidos. A auto-imagem é o fato bruxuleante. Nas vezes, porém, que discernimos qualquer coisa de infâmia em nós, bradamos injúrias à carne, pobre carne, a parte mais distante da nossa essência e a mais próxima do mundo. Estúpida dicotomia! Corpo não é uma característica do mal, nem a alma uma obra-prima do bem. O homem é uma intercessão de contrários. “Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como é, infinito. Pois o homem encerrou-se em si mesmo a ponto de ver tudo pelas estreitas fendas de sua caverna”, como escreveu William Blake em seu “O Matrimônio do Céu e do Inferno”. Eis o grande problema: pela recusa às contradições, o desinteresse foi assassinado em prol da solidez comercial. E também nos esquecemos, muitas vezes, de que, dentro desta intercessão, também somos seres óbvios. E alineares. Fragmentados.
 Devemos, por mais que a primeira pessoa do plural não seja espontânea, assumi-la, assumir os nossos atos, bons e maus. Porque ainda há bondade, claro que há. Uma bondade que não se explica, por mais natural que seja, posto que o egoísmo dissolveu-se na nossa natureza como uma droga perigosa, não como autoestima saudável. "Todas as substâncias são venenos; não existe uma que não seja veneno. A dose certa diferencia um veneno de um remédio", surrada citação de Paracelso, esquecida fora dos diálogos ou dos escritos pedantes, repleto de citações, de arrotos farmacêuticos, como esta crônica.
Autores que se alienam a um tema vendável. Políticos que idealizam firmes estratégias de governo e não sabem o que é política, nem que existe um povo. Um povo que não sabe o que é política: analfabetos e letrados (Desespere-se, Brecht! Essa classe se proliferou!). Guerras por petróleo, territórios, fanatismo. O ventre da ignorância dando à luz corrupção. O ventre do dinheiro abortando ignorantes. E, junto, quem se empenha contra. Ignorantes por alienação. Ignorantes por cobiça.
Natureza e criações humanas denegridas: política, crenças e cultura. Amor, beneficência e prazer. Filosofia, futebol e ética. Dinheiro, família e pôr-do-sol! Não há ideais nas salas de espera. Não há coragem nas salas de cirurgia. Assim se resume a Vida: ganhos, gastos médicos e vermes para dedicar-lhes nulidades.
Na peça “O Santo Inquérito”, de Dias Gomes, há um trecho que transcreve, quase que em totalidade, a minha ideologia sobre a verdadeira virtude humana, sufocada por princípios contestáveis e inúteis: “Por uma causa qualquer, grande ou pequena, alguém tem que sofrer. Porque nem de tudo se pode abrir mão. Há um mínimo de dignidade que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca do Sol”. Mas as pessoas precisam corromper os ideais para sentirem-se verdadeiramente dignas. Corromperam o ideal Cristão!... Budista!... Ortodoxo!... Corromperam a possibilidade socialista, hoje, cambaleante até nas utopias! Corromperam até mesmo a Arte, criando-a ao cifrão, não ao espetáculo da beleza e da consciência.
Mas prego o militantismo sem violência. Prego a existência de uma única guerra: os embates íntimos. Recuemos as armas apontadas ao próximo e lutemos pela supremacia dos nossos anseios mais nobres. Prego, apenas, a coragem de assumirmos que somos pastiches da nossa vergonha e que nos envergonhemos com isso. Roubemos às nossas vidas, unicamente, a memória do ideal ímpar: fecha aspas.


2 comentários:

  1. Vinicius sempre apresentando bons textos aos leitores do blog. Um coluna que deve ser acompanhada em todas as suas publicações.

    Atenciosamente,
    Renan Souza Merces

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