quarta-feira, 4 de junho de 2014

Rei Lear, Shakespeare


Vinícius  Mahier.


Mais do que a humildade de ler Shakespeare no original, considerando-se incapaz de compreendê-lo verdadeiramente, devido ao peso de sua obra, é a humildade de ler uma tradução, sem subestimá-la como algo inútil e malogrado, embora seja, para muitas pessoas (e o inglês como segunda língua ainda é uma realidade da minoria, ao menos no Brasil), a única forma de contato com algum autor estrangeiro.  
E eu não sei inglês. Antes de começar a ler suas peças, o pensamento de que lia uma fraude inferior me apoquentava o espírito e, depois de inúmeras idas a bibliotecas e sebos, pesquisas por traduções, acabei entendendo que, se eu não mudasse minha concepção sobre a importância (e, no meu caso, inevitabilidade) da tradução, não poderia sequer lê-lo no original, caso soubesse sua língua. Não poderia continuar blasonando a literatura como se eu a entendesse em seus aspectos realmente maduros. Talvez sequer poderia ler uma obra de massa escrita em língua brasileira. O problema não era o texto, a insatisfação que me adivinha a cada peça traduzida que eu encontrava e descartava por considerá-la antiga, pretensiosa, vã, desnecessária: o problema era a minha mentalidade acéfala e preguiçosa. Preconceituosa.
Em um de seus ensaios, (Goethe, o sábio”), T.S. Eliot é categórico: “Pois se é verdade que o total desconhecimento da língua limita agudamente nossa apreciação desse poeta, isso não serve de desculpa para que ignoremos por completo sua obra”. E afirma que o essencial de poetas como Shakespeare permanece, devido a sua força universal. Compreendendo finalmente isso, e confesso que o desafio me trouxe uma forte crise de consciência e criativa, responsável por um amadurecimento crítico e literário, consegui terminar uma obra do bardo sem esbarrar, não totalmente, no preconceito de que aquilo era uma espécie de antishakesspeare, uma falsificação barata, e que não estava à altura do tempo que eu estava gastando com ela (embora eu não esteja à altura sequer das notas de rodapé das edições originais). Em suma, li Shakespeare, com ajuda comercial de Millôr Fernandes.
Lear, rei da Grã-Bretanha, decide dividir o reino entre suas três filhas, pedindo antes, no entanto, que elas lhe descreva o quanto o amam e lhe são gratas. Goneril e Regana fazem um discurso impressionante, no qual exaltam as qualidades do pai e o respeito que possuem por ele; a terceira filha, Cordélia, por ter consciência de que não conseguirá transcrever para as palavras o seu real sentimento pelo pai, prefere o silêncio, o qual o rei toma por severo insulto, interpretando-o como uma afirmação clara de falta de amor da filha. Ele, portando, divide sua fortuna entre as duas filhas mais velhas; e Cordélia, expulsa, mesmo sem dote, é pedida em casamento pelo rei da França. O duque de Kent intercede por Cordélia e acaba banido também, voltando ao reino disfarçado, para ajudar o rei (interessante ressaltar que a técnica de travestir personagens é muito recorrente na obra shakespeariana).
Há ainda a história do conde de Glócester, traído por seu filho Edmundo, bastardo, que conspira o pai contra o irmão Edgar, filho legítimo, que acaba tendo que fugir e se disfarçar de mendigo. Edmundo também trama contra o pai, que acaba tendo os olhos arrancados pelo duque da Cornualha, marido de Regana, que, assim como Goneril, acaba se envolvendo amorosamente com Edmundo e, juntas, passam a maltratar o pai e  cortar-lhe gastos, como, por exemplo, metade do seu séquito. Expulso de casa, em companhia com o seu Bobo e Kent, Lear, após sofrer uma grande tempestade, é acolhido por Glócester, quando ainda não havia sido traído pelo filho.
Não sou resenhista. Cabe-me aqui, portanto, apresentar as obras do poeta e minhas impressões sobre a leitura. Quanto a esta primeira, realmente impressiona a força dramática e poética do bardo. Ele consegue articular de forma magistral seus personagens e suas falas muitas vezes são verdadeiros poemas, assim como são (e sem fronteiras aqui, por favor) dramas exemplares. Shakespeare não envelheceu e dificilmente envelhecerá. É claro que, como toda força humana criadora, estava passível de erros e errou, o que não diminui em nada a sua obra. 
Abaixo alguns trechos que destaquei da minha primeira leitura sobre a obra, cuja releitura será a última obra do desafio (toda leitura é uma escrita e, embora ainda seja Shakespeare, embora ainda seja eu, é, acima de tudo, um processo, dinâmico e diferente).

"CORDÉLIA: (à parte) E então, pobre Cordélia? Mas, contudo, não sei; pois teu amor, tenho certeza, é mais profundo do que tua fala" 

"CORDÉLIA: Meu bom senhor, tu me geraste, me educaste, amaste. Retribuo cumprindo o meu dever de obedecer-te, honrar-te, e amar-te acima de todas as coisas. Mas para que minhas irmãs têm os maridos se afirmam que amam unicamente a ti? Creio que, ao me casar, o homem cuja mão receber minha honra deverá levar também metade do meu amor, dos meus deveres e cuidados. Jamais me casarei com o minhas irmãs, para continuar a amar meu pai - unicamente"

"GONERIL: Tu vês como é cheia de mudanças a velhice. A experiência que tivemos foi bem grave; ele sempre gostou mais de nossa irmã; e a falta de critério com que a repudiou agora se mostrou de maneira bem grosseira.
REGANA: É um mal próprio da idade; aliás, nunca teve um maior conhecimento de si próprio.
GONERIL: Mesmo no tempo melhor e mais saudável de sua vida sempre foi um imprudente: devemos esperar de sua velhice não apenas os defeitos há muito tempo adquiridos e entranhados mas também a impertinência e os caprichos que chegam com os anos de senilidade e doença"

"EDMUNDO: Eis a sublime estupidez do mundo; quando nossa fortuna está abalada – muitas vezes pelos excessos de nossos próprios atos – culpamos o sol, a lua e as estrelas pelos nossos desastres; como se fôssemos canalhas por necessidade, idiotas por influência celeste; escroques, ladrões e traidores por comando do zodíaco; bêbados, mentirosos e adúlteros por forçada obediência a determinações dos planetas; como se toda a perversidade que há em nós fosse pura instigação divina. É a admirável desculpa do homem devasso – responsabiliza uma estrela por sua devassidão. Meu pai se entendeu com minha mãe sob a Cauda do Dragão e vim ao mundo sob a Ursa Maior; portanto devo ser lascivo e perverso. Bah! Eu seria o que sou, mesmo que a estrela mais virginal do firmamento tivesse iluminado a minha bastardia"

"KENT: Se eu também conseguir modificar os sons de minha voz, alterando o meu modo de falar, a minha boa intenção me fará realizar plenamente o objetivo que me levou a transformar meu aspecto. Agora, banido Kent, se puderes servir a quem te condenou – e espero que possas – o teu senhor, a quem amas, te encontrará pronto pra tudo".
"BOBO: A verdade é um cachorro que tem de ficar preso no canil. E deve ser posto fora de casa a chicotadas quando madame Cadela quer ficar calmamente fedendo junto ao fogo.
LEAR: Pestilência irritante!
BOBO: Camarada, vou te ensinar uns provérbios.
LEAR: Ensina.
BOBO: Presta atenção, titio:
Mostra menos os teus bens
No que sabes não te expandas
Empresta menos do que tens
Cavalga mais do que andas
Ouve na justa medida
Só arrisca o que não importa
Larga amantes e bebida
Tranca bem a tua porta:
E terás em cada vintena
Mais que o dobro da dezena."
KENT: Isso não é nada, Bobo.
BOBO: Então é como a voz de um advogado sem honorários – também não me deram nada pelo que falei. O senhor não sabe fazer nada com o nada, tiozinho?
LEAR: Claro que não, rapaz; do nada não sai nada.
BOBO: (A Kent.) Por favor, diz a ele que isso é tudo que lhe rendem as terras que não tem – ele não vai acreditar num Bobo".
LEAR: Estás me chamando de bobo, Bobo?
BOBO: Você abriu mão de todos os outros títulos; esse é de nascença".

"LEAR: Tem alguém aqui que me conheça? Este aqui não é Lear. Lear anda desse jeito? Fala assim? Onde estão os olhos dele? Ou sua inteligência enfraqueceu ou tem o discernimento em letargia... Ah! Estou acordado? Não pode ser. Alguém é capaz de dizer quem eu sou?
BOBO: A sombra de Lear."

"(Outro local do descampado. A tempestade continua. Entram Lear e o Bobo.)
LEAR: Sopra, vento, até arrebentar tuas bochechas! Ruge, sopra! Cataratas e trombas do céu, jorrem torrentes até fazer submergir os campanários e afogar os galos de suas torres. Relâmpagos de enxofre, mais rápidos que o pensamento, precursores dos raios que estraçalham o carvalho, queimem minha cabeça branca. E tu, trovão que abala o universo, achata para sempre a grossa redondez do mundo! Quebra os moldes da natureza e destrói de uma vez por todas as sementes que geram a humanidade ingrata!
BOBO: Oh, titio, a água benta da bajulação numa casa bem seca é melhor do que esta água de chuva a céu aberto. Entra, titio bonzinho, e pede a bênção a tuas filhas. Esta noite não tem pena nem dos bobos nem dos sábios.
LEAR: Arrota as tuas entranhas! Vomita, fogo! Alaga, chuva! A chuva, o vento, o trovão e o fogo não são minhas filhas. Elementos, eu não os acuso de ingratidão; nunca lhes dei reinos ou chamei de filhos, nunca me deveram obediência alguma. Portanto, podem despejar sobre mim o horror do seu arbítrio. Olhem, aqui estou eu, seu escravo, um pobre velho, débil, doente, desprezado. Mas continuo a chamá-los de cúmplices subservientes que se uniram a minhas duas desgraçadas filhas para lançar os batalhões do céu contra esta cabeça tão velha e tão branca. Oh! Oh! É revoltante!"

"LEAR: Lê.
GLOUCESTER: Como, com o buraco das órbitas?
LEAR: Oh, oh. O que é que estás dizendo? Sem olhos na cara nem dinheiro na bolsa? O vazio da cara é mais caro, o da bolsa é mais claro. Mesmo assim, vês como vai indo o mundo?
GLOUCESTER: Um mundo sentido.
LEAR: Como, estás louco? Mesmo sem olhos um homem pode ver como anda o mundo. Olha com as orelhas. Vê como aquele juiz ofende aquele humilde ladrão. Escuta com o ouvido, troca os dois de lugar, como pedras nas mãos; qual o juiz, qual o ladrão? Já viste um cão da roça ladrar prum miserável?
GLOUCESTER: Já, meu senhor.
LEAR: E o pobre diabo correr do vira-latas? Pois tens aí a imponente imagem da autoridade; até um vira-lata é obedecido quando ocupa um cargo. Oficial velhaco, suspende tua mão ensangüentada! Por que chicoteias essa prostituta? Desnuda tuas próprias costas. Pois ardes de desejo de cometer com ela o ato pelo qual a chicoteias. O usurário enforca o devedor. Os buracos de uma roupa esfarrapada não conseguem esconder o menor vício; mas as togas e os mantos de púrpura escondem tudo. Cobre o crime com placas de ouro e, por mais forte que seja a lança da justiça, se quebra inofensiva. Um crime coberto de trapos a palha de um pigmeu o atravessa. Não há ninguém culpado, ninguém – digo, ninguém! Eu me responsabilizo. Podes acreditar em mim, amigo, tenho o poder para lacrar os lábios do acusador. Arranja olhos de vidro e, como um político rasteiro, finge ver aquilo que não vês. Vamos, vamos, vamos, vamos! Tirem-me as botas. Mais força. Mais força! Assim.
EDGAR: (À parte.) Oh, que mistura de bom senso e de absurdo. A razão na loucura".