sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O castelo, Franz Kafka




Por Virgínia Brasil 


Publicado apenas após a morte de Franz Kafka, “O castelo” (1926) foi minha primeira experiência de leitura com o autor. A história começa com K., o novo agrimensor do castelo, chegando na cidade. No decorrer da história percebemos que tudo não passa de um mal-entendido. A contratação de um agrimensor para o castelo foi refutada há tempos, mas teve suas atas esquecidas pelos regedores do mesmo. A partir desse ponto da narrativa, com o risco de demissão, K. casa-se com uma empregada de um albergue e consegue um emprego, porém, não dando conta do serviço, é novamente posto na rua, terminando a sua história no quarto das empregadas que o acolhem e completamente miserável.

A história é pacata, nada acontece com exaltação. Os personagens secundários vêm e vão com a mesma passividade misteriosa. Digo misteriosa porque durante a narração muito se diz e especula sobre o castelo e seus funcionários, mas nada se confirma; os personagens dotados de certo poder se contradizem, se emboscam em confusões próprias que nós leitoras e os personagens da própria obra não conseguem desvendar.

Um ponto presente neste livro de Kafka importante de ser destacado é a constante e rigorosa crítica política. A personagem K. é marcada pela busca incessante de conhecer e entender os processor que permeiam o poder. Podemos relacionar essa característica com a época histórica da escrita do livro, com o advento da modernidade e da burocracia estatal presentes no Estado.


Minhas primeiras impressões de Kafka foram que, primeiramente, ele escreve de forma que suas críticas à realidade não sejam completamente ocultas no livro. Em segundo lugar, nota-se uma forma peculiar de escrita que desenvolve histórias dentro de outras sem deixá-las inacabadas. 

Acompanhem as novidades do desafio na Tag: Um autor para 2014. 

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Resenha - As avós, Doris Lessing

(As avós, Doris Lessing: tradução de Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 104 p.) 


“De ambos os lados de um pequeno promontório, pontilhado por cafés e restaurantes, havia um mar brincalhão porém digno, bem diferente do verdadeiro oceano que rugia e roncava do outro lado da bocejante baía cercada por rochas que todos chamavam – até nos mapas tinha este nome – de Dentes de Baxter.”

É nesse cenário paradisíaco que duas meninas novatas na escola se tornam grandes amigas. Uma amizade capaz de afetar gerações de duas famílias construídas sob um único alicerce. Lil (ou Liliane) é a mais delicada, de feições sublimes enquanto Roz (ou Rozeanne) esbanja um corpo mais maduro com uma visão irônica de tudo; se completam como gêmeas. Crescem juntas e seus atritos são marcados por suas diferenças físicas e com o passar do tempo a relação parece girar em torno de um “determinismo”, tudo que acontece a uma necessariamente vai acontecer à outra.   

Nas relações amorosas insatisfatórias, diante das constantes investidas ciumentas dos maridos, trazem novos ares na amizade. Os filhos são quase o espelho das mães, desbravam o mar como as pequenas fizeram anos atrás. A família, então, fica subordinada a Lil e Roz, são elas a base afetiva psicológica para enfrentar os percalços da separação e da perda. O que seria natural torna-se desconcertante.

Ian, filho de Lil, encontra conforto, diante da morte do pai, em Roz. Tom, contrário ao relacionamento do amigo com a mãe, procura os carinhos de Liliane. O absurdo foge aos desejos sexuais de ambas amigas que precisam viver sob segredo na comunidade local.

O espaço de tempo transcende as principais marcas da vivência de Roz e Lil. No épico, temo-las como heroínas, capazes de solucionar os atos que ameaçam a ordem estabelecida. Às demais narrativas podemos efetivar as imagens globais do texto e rememorar tudo que além do cenário paradisíaco desestruturam o ambiente.

As mulheres de Lessing em “As avós” são mulheres que conquistaram a liberdade de pensamento e expressão. A união dessas garotas é o ponto crucial no desenrolar de suas vidas, se entendem como ninguém mais. As relações com os filhos é resultado do carinho cultuado entre elas.

O breve romance de Doris Lessing entrega ao seu leitor um turbilhão de sentimentos que rompem com os todos os “dogmas” da literatura. Aqui os conceitos de amizade, família, amor transpassa o aceitável para, ainda sim, torna-se possível. A leitura é fluida em um enredo que busca desenvolver-se nos fatos, principalmente por buscar o cerne das questões abordadas.


Diante de todas as reviravoltas, seria o “mar brincalhão” nosso principal personagem?    

domingo, 16 de fevereiro de 2014

#1 - Diário de Leitura Doris Lessing, As avós




Publicado em 2003, o breve romance da vencedora do Nobel de Literatura, traz um enredo fluido e a sensação do leitor ao terminar é de ter lido um conto, esteticamente a se comparar talvez aos escritos de Alice Munro. A história gira em torno de quatro personagens que vivem paixões um tanto quanto desconcertantes. A narrativa é marcada por poucos diálogos e a autora empreende somente descrições detalhadas aos temas centrais.

A escrita de Lessing conquista seu leitor na primeira linha e o encaminha nos desafios psicológicos de seus personagens com maestria.


O livro foi traduzido pela Companhia das Letras e publicado em 2008 o Brasil, logo após o anúncio do grande prêmio da carreira de Doris Lessing.   

sábado, 15 de fevereiro de 2014

[Umas e outras] Barzinho



Por Vinícius Mahier

Sou um personagem.
Nunca suspeitaram deste plágio?
o copo cristalino me revela 
o mijo da literatura,
desce mais uma rodada, hóstias
como tira-gosto.
Mijo, 
sem vaso sanitário.

Teu romance foi assunto entre
batatas fritas.
Ali, eu tinha em mãos
toda a Comédia
e a tua obra, dentro dela, inconcebível,
manchas de gordura na braguilha avolumada,
onde não cabem ateus.
Mete logo a pica na garrafa.

Você tem que ser mau,
cheiro de cigarro 
na bituca de um sermão.
falta unidade, eu sei,
o bezerro é da raça, cruzo com ele, doente,
e nada
de tango argentino, Mrs. Dalloway
(até a foz do rio negro
nada)
 
Se tudo acaba aqui,
prefiro ser esta garrafa de cerveja.
Santa trilogia, não a bíblia.
Deus 
é um best-seller.

Pausa. Aqui termina a farsa do inconsciente.  Falamos de Marx? Goebbels? Benjamin? Olha, a experiência... Pega logo a cocaína, o mito, a porra, narra pros teus ossos tua quebra de carne, marinheiro. Aos camponeses, videogames. Participem, fundos.

Que autor encontramos, afinal?
Levanta-te e mete, como os outros, 
enquanto ela te acena, 
ou amputada, 
suando, 
do outro lado do copo. 
Bebe. Lambe.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Resenha - Amor Invertido, Maximiliano Souza


(Amor Invertido, Maximiliano Souza. MODO Editora, 2012. 227 p.)

Esse é outro desses típicos romances que parecem ter seus enredos criados a partir da velha receita básica. Diego sai da pequena cidade de Bonito e vai morar com a irmã na grande São Paulo, com pretensão de cursar a faculdade. Entretanto, o que se pode esperar, ele se envolve com Vinícius, um fotógrafo rico e já conhecido da família.

De todas as tentativas de criar uma reviravolta para o casal do livro o autor esbarra nas já corriqueiras situações das novelas globais. Diego não acredita poder se apaixonar por um homem e em seu discurso referisse à homossexualidade do vizinho de apartamento como “anormalidade” e empreende por vezes um pensamento preconceituoso. Narrado em primeira pessoa, a voz da protagonista conduz a narrativa basicamente por uma visão preconceituosa, não somente à questão da sexualidade como também à racial.

O autor tenta por vezes criar um drama psicológico para a protagonista, mas morre na voz juvenil fora do contexto. As introduções de narrativas secundares são superficiais e ganham pouca relevância ao enredo central, o que parece ser de extrema importância. O passado das personagens, por exemplo, não é trabalhado e fica restrito à visão nada panorâmica do narrador-personagem.

“Quer dizer, eu era uma pessoal NORMAL. Já tinha tido várias namoradas. Inclusive já havia dormido com algumas.”

Quanto ao tema homossexualidade, temos Diego certo de sua sexualidade, mas abalado ao primeiro contato com Vinícius. A resistência está ligada à sua consciência preconceituosa e vê no vizinho a personificação de um desejo físico incompreendido. A mente não aceita as necessidades do corpo. Vinícius nutria uma velha obsessão por Júlio, irmão de Diego, morto anos atrás. O amor platônico acabou por transformá-lo em um maníaco que espalha fotos do outro pelo quarto.

“Não queria ser anormal. O que havia me deixado curioso a princípio era saber qual dos sentimentos era mais forte: meu instinto ou meu medo.”

Existe, então, a dualidade entre o que aceita com naturalidade a homossexualidade e o que abomina e tem receio que as pessoas descubram. Uma cena para descrever um ato homofônico, se já não bastasse os da protagonista, é apresentado no final do livro e parece um daqueles pedidos editoriais para tornar a obra vendável e condizente com nossa realidade. Algo recebido sem importância pelas personagens tanto quanto para o leitor. (A criatividade no caso foi tamanha que o autor só repetiu o caso das lâmpadas florescentes).   
Outra introdução malsucedida do autor está no relacionamento da irmã de Diego, Juliete. Ela mantém sentimentos por um afrodescendente. Novamente nos deparamos com o discurso preconceituoso da protagonista que em um dado momento referisse a ele como “bicho raro”, entre outras denominações. Se tudo não passa de um equívoco inicial não é apresentado nenhum diálogo de aceitação.

A linguagem é bastante juvenil a um livro que pertence a um selo especial para obras que abordem o tema homossexualidade, dedicado a adultos. Durante toda a leitura, o leitor encontra erros de revisão, como palavras com grafia errada e acentuação longe das novas normas ortográficas.


Enfim, uma mísera estrela sem recomendações.                      

sábado, 8 de fevereiro de 2014

[Umas e outras] Teu nome impresso


Por Vinícius Mahier

TE VIRA

Te senta aí, garoto. Amputa tuas mãos antes que eu leia. Não quero tuas mãos suando de ansiedade. Amputa logo. Vai, toma o machado. Amputa-as tu mesmo. Não quero tuas mãos criando textos. Tua boca pode. Teu nome impresso. Te vira. E a dor que estás sentindo, não te animas? Vai, lava este sangue. Anda. Esta água suja. E sobre, engatinha. 

MOLÉSTIA

As circunstâncias me fizeram um canalha. Sou mau, porém saudável, até solar. Estou me usando de álibi ao meu excesso, ao meu contraste. Me usando de álibi ao álibi da sorte. Fôlego, possível. Me uso de fôlego à orla do meu cansaço. Desisto antes.

DE AMOR

Falar de amor. Não me parece obtuso, o clímax da minha poética. Mas Bloom (não, não me ouça, só estou sendo convencional), e a angústia?

VOLÚPIA

Nem horrível foi. Parecia que eu estava trepando com um dogma. Sem ritual... Pior é eu ter noção disso. A falta de humor é a nudez selvagem do espírito. E que volúpia pode provocar um espírito despido da sua humanidade? Que volúpia um corpo? O sexo, sem a força do humor, é inviável. E crer que o sexo é independente a tudo é subestimar pateticamente o prazer, de uma sutileza humorística deliciosa. No fim, creio que só o patético resiste à falta de humor. O patético incapaz de rir de si mesmo, que reina nos sentimentos graves demais, por isso nem vivos, nem mortos. Há humor suficientemente intrínseco na vida e na morte que, abolido do mundo, as extingue também. Então imagina! Imagina esse mundo sem vida e sem morte, em que o suicídio só não é a utopia total porque não há delírio quando não se pesa. O tédio! Só o tédio nos fará prováveis. Sem desassossego. 

POEMA

Se insistem em colocar
este tipo de livro
na minha bibliografia,

que coloquem também
as vacinas e bulas
nas do Quintana e Drummond.

A ESMO

"A que distância está a outra tropa?" Abro, a esmo, o livro de Shakespeare e dou de cara com este verso. Me sinto fundo. Não pelo verso de Shakespeare, mas por abrir, a esmo, um livro e registrar o instante. Tantos fizeram isso, e fazem. Acabo de fazer também. É claro que, até chegar ao verso citado, abri o livro em diferentes páginas, que não me agradaram. Sujar meu texto com um verso anti-shakespeariano? "Gasta fôlego em vão" (Tímon de Atenas) Abri, a esmo, e esta aí a pompa. Mas atentemo-nos, enfim, ao conteúdo. A outra tropa, a que distância está?

DIANTE

Estou diante. Ante sempre alguma coisa. Enfrento. Estou diante. Por que não enfrentaria? Não, nem pestanejo. Estou diante. Diante dos meus olhos, que me cegam as pálpebras. 

FATÍDICO

Talvez, naquela ocasião, a única coisa que eu realmente queria era que o futuro chegasse logo para que eu pudesse estar aqui, sossegado, escrevendo as minhas memórias. Hoje, já penso diferente: a única coisa que quero é terminar logo estas recordações e continuar assim, sem viver, para não ter no futuro qualquer relutância ao meu fatídico arrependimento.

IDEIA

Percebo, em mim, eu. Sou outro porque tenho uma ideia de mim. Nem me percebo. Tenho também, e me consola, a ideia do outro. Sou eu. Sou nada. Não posso querer ser nada, pois tenho a ideia de tudo.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Um Autor para 2014 - Os Leitores




Durante o ano de 2014 o blog “A Odisseia de um Leitor” acompanhará sete leitores que lerão a obra completa de um autor. O desafio “Um Autor para 2014” conta com o desbravar de grandes nomes da literatura mundial.

Conheça os participantes e seus autores.


Renan Souza Merces (R.S.Merces) um verdadeiro sem tempo que entre uma leitura e outra inventa mais um projeto. Trabalha numa biblioteca, estuda Letras e caça bons filmes. Em 2014 dedicará algumas horas à maluca Virgínia Woolf.


Virgínia Dela Sávia Brasil (Virgínia Brasil) é uma maníaca que, se vê um livro com alguém, não descansa até descobrir o título. Cursa Letras para controlar o vício. Embarcará, este ano, no fantástico mundo de Franz Kafka com muita sede e coragem.


Literatura é mito .Teatro é um porre. Não tenho paciência pra poesia. Porém, aconselhado pelo venenoso Iago, resolvi conciliar as famílias Arte e Vida, dentro do meu regicídio, e ler a obra shakespeariana. Descobrir, entre uma peça e outra, que Shakespeare não importa. Apenas sua linguagem, indomada! Sê-la ou não ser? Eis o chavão... a ser banido (Vinícius Mahier, estudante de Letras).


Shely Adna, estudante de letras. Leio não somente para passar o tempo ou tirar os pés do chão da realidade rotineira, mas para alimentar minha alma... Incentivada pelo desafio proposto, pretendo finalmente terminar a leitura realista e romântica da magnifica obra deixada pelo carioca Machado de Assis.


No início achei o "desafio" interessante (ainda acho)... Até entender a profundidade e ficar com medo. Mas, aqui estou, aluna de Letras que ama ler, mas tem receio em escrever. Taimara
Obs. Irei "comentar" a incrível obra de Agatha Christie.


Taynara Cruz, estudante das magníficas Letras. Chegar ao final de um livro, realmente intrigante, sempre despertou em mim curiosidade pela trajetória do autor. Este desafio pode ser uma realização pessoal de uma leitora que se dedicará à incrível obra de Gabriel García Márquez.



Lilian Farias nasceu em 1985, é formada em Letras/Português pela UPE- Universidade de Pernambuco. Dá aula e ama escrever poesias. Autora do romance “O céu é logo ali” e blogueira. "Amo escrever sobre aquilo que incomoda, não tenho medo do preconceito!" Trabalha no movimento Social. Lilian vai ler Eduardo Galeano. 

Fique por dentro de todas as novidades do desafio, siga nossa Tag: Um autor para 2014

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Resenhas que mais gostei de escrever em 2013 - #1 Como um romance, Daniel Pennac




Daniel Pennac começa seu livro nesses quinze minutos que um pai dedica para contar uma história ao filho. Leitura que toma a infância da criança para mundos fantásticos e imaginários. Contudo esse prazer sofre influência externa e interna. Um leitor pode se abater com o medo dá não compreensão e recusar a leitura de Ulysses, James Joyce, por exemplo. Realidade que acompanhamos nas escolas de ensino médio nos estudos literários, onde os professores enfocam os clássicos.

Um dos personagens do enredo de Pennac está na página 48 de Madame Bovary, precisa lê-lo em quinze dias e para ali para contabilizar as possibilidades de término. Ele pretende reconciliar com o antigo hábito de ler, lembrado constantemente pelos pais. Essa é uma das narrativas que o autor escreve para enfatizar o papel da literatura na sociedade.


Publicada no blog Poesia na Alma. Confira resenha completa Aqui.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A Vagabunda



Por Vinícius Mahier
                
Um dos livros que mais me marcaram, e poucos realmente me marcam, apesar do meu fascínio pela leitura, foi a novela "A Vagabunda", clássico francês da primeira metade do século passado, escrito por Gabrielle Colette. A novela, cujo título reflete bem o preconceito que uma atriz sofria na época, e ainda sofre, porém mais espetacularizado, e até aplaudido, como alimento à sede dos que não produzem saliva própria, pra depois cuspi-la, cheios de críticas forçadas ao fundo de sua goela, a novela de Colette tem como protagonista a sensibilidade feminina, prosa riquíssima em poesia (pra mostrar que essa distinção entre o que é prosa e o que é poesia não passa de álibi para os que não entendem de arte).
O enredo é um pretexto à sensibilidade. Para os leitores que procuram histórias ágeis de perder o fôlego, desistam desta obra. Não vale a pena. A obra é para quem deseja perder o fôlego de outra maneira, de forma lenta, reflexiva. Cada página reserva, ao menos, um trecho que apunhala nossa concepção de sensibilidade. Mas não fica apenas nisso. Atinge outras concepções também, sendo o livro maduro que é. Cherí, outra obra da autora, que virou filme, comparado a esta novela, não tem nem a metade da profundidade que a autora colocou aqui. A alma feminina, e os seus medos, reservas e delírios, expostos de uma maneira simples e poética.
Contudo, não é exatamente isso que quero destacar. Isto não é uma resenha. Meu intuito é apenas introduzi-los superficialmente à obra e dar o meu elogio, de forma rápida e sincera. Leigos também têm opinião. E como creio que, por melhores que sejam as resenhas, elas são apenas apontamentos as obras de que falam, deixo uma passagem do livro, uma reflexão da personagem sobre o ato da escrita, que é o interesse maior do blog.
 
"Exato, quero, porque quero, e está acabado. Contudo... dias há em que a solidão, para um ser na minha idade, é o vinho capitoso que traz a embriaguez da liberdade, como outros há em que ela não passa de um tônico amargo, como há ainda aqueles em que ela tem o poder de um veneno que faz com que atiremos a cabeça de encontro às paredes.
Esta noite, porém, quisera ignorar de que modo ela me invade. Oxalá me contentasse em hesitar, não distinguir se o arrepio que me percorrerá, ao contato frio dos meus lençóis, será de medo ou prazer.
Só... há muito que estou só. Há tanto, que já cedo ao hábito do solilóquio, das conversas com a minha cachorra, com o fogo, com a minha imagem... É uma mania adquirida pelos reclusos, pelos velhos prisioneiros; mas sou livre... E, se vivo a dialogar com o meu eu, trata-se de uma espécie de necessidade literária de coordenar, de redigir meu pensamento.
À minha frente, do outro lado do espelho, na misteriosa câmara de reflexos, está o retrato de uma "literata fracassada". E aliás, sempre que se referem à minha pessoa, apontam-na como "pessoa de teatro", mas nunca lhe atribuem qualidades de atriz. Por quê? É um matiz sutil, uma declinada recusa, por parte do público e dos meus próprios amigos, em conceder-me alguma projeção numa carreira que, afinal, foi da minha escolha... Uma literata mal sucedida: eis o que devo representar para todos, eu, que não escrevo mais, que me nego a alegria, o luxo de escrever...
Escrever! Poder escrever! Isto significa o longo devaneio diante da folha em branco, o rabiscar inconsciente, o brincar da pena que gira em torno do borrão de tinta, que mordisca a palavra imperfeita, enche de garras, de flechazinhas, orna-a de antenas, de patas, até que ela venha a perder a sua figura legível de palavra, metamorfoseada que foi em fantástico inseto, borboleta-dada que alçou seu voo.
Escrever... É o olhar fixo, hipnotizado pelo reflexo da janela sobre o tinteiro de prata, é a divina febre que assoma às faces, à fronte,, enquanto uma bem-aventurada morte gela sobre o papel a mão que escreve. É também o pleno olvido da hora, a indolência no macio divã, essas bacanais do espírito inventivo donde saímos curvados, embrutecidos, mas já recompensados, mensageiros dos tesouros que, sob o pequeno círculo de luz que a lâmpada descreve, serão entornados na página virgem...
Escrever! Tentação de purgar raivosamente tudo de mais sincero que nos vai pela alma adentro, e rápido, com aquela rapidez que faz a mão relutar e protestar contra o deus que a guia... depois encontrar, no dia seguinte, em vez do ramo de ouro, miraculosamente, desabrochado na hora flamejante, um espinheiro seco, uma flor abortada.
Escrever! Gozo e sofrimento dos ociosos! Escrever!... Bem que experimento, de tempos em tempos, essa necessidade, intensa como a sede no verão, de anotar, de exprimir... E pego então da pena, para dar inicio àquele jogo perigoso e traiçoeiro que, através do bico duplo e flexível, apanha e fica o mutável, o fugaz, o apaixonante adjetivo... Mas não passa de uma curta crise, prurido de uma velha cicatriz...
Para escrever, é preciso ter tempo de sobra! Além do mais, não sou um Balzac, sou apenas... O frágil conto que começo a edificar lá se vai por terra quando o fornecedor bate à porta, quando o sapateiro vem trazer a conta, quando o procurador e o advogado me telefonam, quando o agente teatral chama-me ao seu escritório para anunciar que "vamos exibir-nos na cidade, numa casa muito conceituada, mas que não tem por hábito pagar bons preços..."
Ora, desde que me encontro só, foi preciso, em primeiro lugar, viver, depois divorciar-me e, finalmente, continuar a viver... Tudo isso reclama uma energia, uma pertinácia inacreditável. E a troco de quê? Será que este quarto banal, estilo Luís XVI, ordinário, é o único porto, e este espelho intransponível onde me escoro, fronte contra fronte, será o esteio que me resta?
Amanhã é domingo: vesperal e sarau no Empyrée-Clichy. Duas horas, já!... Para uma intelectual fracassada, é hora de dormir".

 (Tradução de Juracy Daisy Marchese)



[Umas e outras] Conto



01
                  Preciso de um narrador. Preciso de alguém que saiba contar uma história. Uma história de aventura, que é o que pretendo neste livro. Contar uma história de aventura, estampar meu nome alheio ao lado de camisinhas de mercado. Ao lado da fertilidade.
                  Preciso de um personagem.
                  — Puta que pariu.
                  Preciso de tudo para começar. Mas a vida não é um naufrágio. Viver... Por mais que eu tenha naufragado, Ana, a vida não é um naufrágio. Mas você, ó ninfa, não é um dos meus personagens. Então fume... fume... fume...

02

                 Teu suicídio. Capítulo chave, vagabunda. Necessito de você. Eu tenho um romance pra começar, embora já o tenha comprado, ao lado da esterilidade. Mas não importa. Bentinho começou o dele na última frase. Nada. Teu suicídio me elabora. Talvez, e é isso que me assombra no teu suicídio, eu tenha morrido antes.

03

                 Não quero representações, te ordeno, caos. Não quero. Preciso de um narrador que não me represente. Sou caos, mais parecido com outro caos do que com o que me reproduz, ou me ordena, gênesis. Não ordeno caos nenhum, não crio nada que não seja caos, um caos que não se configura como gênesis. O caos total, sem solidão. Ana, eu necessito de você. Preciso, preciso de um personagem.
               — Preciso de um narrador.

04

               ... na fumaça, a fronteira ao nosso espectro. Fume, então.

05

               Esqueça esta história de caos. Eu quero contar histórias, Ana, eu quero uma síntese nas correntes: que me arrasta... que me arrasta... Te mando cartas. Me dou um tiro na boca, agora preparada para o beijo úmido. Atiro, qualquer coisa. Escondo os poemas debaixo da língua ensanguentada, com impressões digitais das tuas cinzas. Ana, por que não desconcentra? Se me ama, já sabe. Esquece. Preciso.
               — Travessão.

(29.01.2014, São João del-Rei)