sábado, 25 de janeiro de 2014

[Umas e outras] Na boca da linguagem...



Por Vinícius Mahier

FELICIDADE



            Foram dias em que nada pude contra a felicidade. Nem a poesia me ajudou a me frustrar. Nada se configurou uma miséria. Ela, a felicidade, se instaurou em mim, quase pornográfica, sem intervalo. Súbita, me envileceu, dentro do que eu supunha controlável. Morou-me de forma tão constrangedora que não pude sequer uma piada. Ou um deboche. A felicidade, insaciável, tomou conta de mim. Não eu dela. Nada pude. Nem mesmo ser feliz, o óbvio.

PORNOGRAFIA

O ato
de fecharem as cortinas
à plateia alguma.

ESPELHO

            Olhei para o espelho, o álibi dos poetas. Olhei, não pra me ver. Olhei em poesia., pra dizer que penso e sofro com o que vejo e sou. Mas nunca é nada disso. Pacifica o meu sossego, o espelho. Vinícius, te sugiro em mim. 

ANALOGIA

Também extraio analogias
durante uma trepada.
esqueço de gozar enquanto gozo
esqueço que é corpo
o que há no corpo
o que se chupa, o que se reza
à própria reza, e come
esqueço que há boca pra cuspir
enquanto cuspo nesta boca
anônima
e faminta, minha, como os lábios,
ou de uma vagabunda velha,
lá, dentro de mim?

MACUNAÍMA

               Quis chorar. Acreditava que a lágrima, quando se está sozinho, é o ato mais sincero do homem. Aos outros, não chorava. A si, não conseguia. Fechava os olhos, buscava no silêncio o nascimento do seu choro. Mas o olhar não queria parir nada de sublime. Estava seco, indiferente. Nunca foi tão cínica a escuridão materna das pálpebras. Frustrou-se. Teve raiva dos olhos. "Serão de mim os únicos órgãos maus?", pensava. Continuou deitado, chorando intimamente, já não por suas desilusões, mas pelo aborto da lágrima, o reconhecimento a si do seu caráter, da sua santidade.

NA BOCA

Na boca da linguagem,
nicotina.
E a vida morna, como se existisse.
Súbito, um ruído
me permite
o vácuo:
Me estilhaço, lento, e gozo!
... na fumaça...

ÁLIBI

                     Nós? Fabricamos a inércia como um protomártir aos nossos dogmas ridículos de ter que chorar por alguma coisa, seja lá o que for. Se a inércia é a causa primeira do tédio, é ela também, em seu culto, o demônio que o dispersa, e vivemos nesse ciclo, insuportavelmente humanos. E Deus alheio a tudo isso, cansado de orações vazias e herméticas, que Ele não entende. Nem nós. E poderia ser de outra forma? Todo dia rezamos por um milagre qualquer, por uma graça extraviada. Foda-se o intento! O que queremos é o milagre! A graça! Ou alguma maldição, ao menos. Qualquer farrapo sobre-humano basta, até a inércia sobre-humana nos serve. Deus é um álibi perfeito pra duvidarmos de nós com aparência de dignidade. E Ele, claro, alheio a isso tudo, fabricando a Sua inércia, como um Bartleby resignado, que apenas prefere, não sabe o que. Nós, nem isso.


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