Por Vinícius Mahier
Um
dos livros que mais me marcaram, e poucos realmente me marcam, apesar do meu
fascínio pela leitura, foi a novela "A Vagabunda", clássico francês
da primeira metade do século passado, escrito por Gabrielle Colette. A novela,
cujo título reflete bem o preconceito que uma atriz sofria na época, e ainda
sofre, porém mais espetacularizado, e até aplaudido, como alimento à sede dos
que não produzem saliva própria, pra depois cuspi-la, cheios de críticas
forçadas ao fundo de sua goela, a novela de Colette tem como protagonista a
sensibilidade feminina, prosa riquíssima em poesia (pra mostrar que essa
distinção entre o que é prosa e o que é poesia não passa de álibi para os que
não entendem de arte).
O
enredo é um pretexto à sensibilidade. Para os leitores que procuram histórias
ágeis de perder o fôlego, desistam desta obra. Não vale a pena. A obra é para
quem deseja perder o fôlego de outra maneira, de forma lenta, reflexiva. Cada
página reserva, ao menos, um trecho que apunhala nossa concepção de
sensibilidade. Mas não fica apenas nisso. Atinge outras concepções também,
sendo o livro maduro que é. Cherí, outra obra da autora, que virou filme,
comparado a esta novela, não tem nem a metade da profundidade que a autora
colocou aqui. A alma feminina, e os seus medos, reservas e delírios, expostos
de uma maneira simples e poética.
Contudo,
não é exatamente isso que quero destacar. Isto não é uma resenha. Meu intuito é apenas introduzi-los superficialmente à obra e dar o meu elogio, de forma rápida e
sincera. Leigos também têm opinião. E como creio que, por melhores que sejam as resenhas, elas são apenas
apontamentos as obras de que falam, deixo uma passagem do livro, uma reflexão da
personagem sobre o ato da escrita, que é o interesse maior do blog.
"Exato, quero, porque quero, e está acabado. Contudo... dias há em que a solidão, para um ser na minha idade, é o vinho capitoso que traz a embriaguez da liberdade, como outros há em que ela não passa de um tônico amargo, como há ainda aqueles em que ela tem o poder de um veneno que faz com que atiremos a cabeça de encontro às paredes.
Esta noite, porém, quisera ignorar de que modo ela me invade. Oxalá me contentasse em hesitar, não distinguir se o arrepio que me percorrerá, ao contato frio dos meus lençóis, será de medo ou prazer.
Só...
há muito que estou só. Há tanto, que já cedo ao hábito do solilóquio, das
conversas com a minha cachorra, com o fogo, com a minha imagem... É uma mania
adquirida pelos reclusos, pelos velhos prisioneiros; mas sou livre... E, se
vivo a dialogar com o meu eu, trata-se de uma espécie de necessidade literária
de coordenar, de redigir meu pensamento.
À
minha frente, do outro lado do espelho, na misteriosa câmara de reflexos, está
o retrato de uma "literata fracassada". E aliás, sempre que se
referem à minha pessoa, apontam-na como "pessoa de teatro", mas nunca
lhe atribuem qualidades de atriz. Por quê? É um matiz sutil, uma declinada
recusa, por parte do público e dos meus próprios amigos, em conceder-me alguma
projeção numa carreira que, afinal, foi da minha escolha... Uma literata mal
sucedida: eis o que devo representar para todos, eu, que não escrevo mais, que
me nego a alegria, o luxo de escrever...
Escrever!
Poder escrever! Isto significa o longo devaneio diante da folha em branco, o
rabiscar inconsciente, o brincar da pena que gira em torno do borrão de tinta,
que mordisca a palavra imperfeita, enche de garras, de flechazinhas, orna-a de
antenas, de patas, até que ela venha a perder a sua figura legível de palavra,
metamorfoseada que foi em fantástico inseto, borboleta-dada que alçou seu voo.
Escrever...
É o olhar fixo, hipnotizado pelo reflexo da janela sobre o tinteiro de prata, é
a divina febre que assoma às faces, à fronte,, enquanto uma bem-aventurada
morte gela sobre o papel a mão que escreve. É também o pleno olvido da hora, a
indolência no macio divã, essas bacanais do espírito inventivo donde saímos
curvados, embrutecidos, mas já recompensados, mensageiros dos tesouros que, sob
o pequeno círculo de luz que a lâmpada descreve, serão entornados na página
virgem...
Escrever!
Tentação de purgar raivosamente tudo de mais sincero que nos vai pela alma
adentro, e rápido, com aquela rapidez que faz a mão relutar e protestar contra
o deus que a guia... depois encontrar, no dia seguinte, em vez do ramo de ouro,
miraculosamente, desabrochado na hora flamejante, um espinheiro seco, uma flor
abortada.
Escrever!
Gozo e sofrimento dos ociosos! Escrever!... Bem que experimento, de tempos em
tempos, essa necessidade, intensa como a sede no verão, de anotar, de
exprimir... E pego então da pena, para dar inicio àquele jogo perigoso e
traiçoeiro que, através do bico duplo e flexível, apanha e fica o mutável, o
fugaz, o apaixonante adjetivo... Mas não passa de uma curta crise, prurido de
uma velha cicatriz...
Para
escrever, é preciso ter tempo de sobra! Além do mais, não sou um Balzac, sou
apenas... O frágil conto que começo a edificar lá se vai por terra quando o
fornecedor bate à porta, quando o sapateiro vem trazer a conta, quando o
procurador e o advogado me telefonam, quando o agente teatral chama-me ao seu
escritório para anunciar que "vamos exibir-nos na cidade, numa casa muito
conceituada, mas que não tem por hábito pagar bons preços..."
Ora,
desde que me encontro só, foi preciso, em primeiro lugar, viver, depois
divorciar-me e, finalmente, continuar a viver... Tudo isso reclama uma energia,
uma pertinácia inacreditável. E a troco de quê? Será que este quarto banal,
estilo Luís XVI, ordinário, é o único porto, e este espelho intransponível
onde me escoro, fronte contra fronte, será o esteio que me resta?
Amanhã
é domingo: vesperal e sarau no Empyrée-Clichy. Duas horas, já!... Para uma
intelectual fracassada, é hora de dormir".
(Tradução de Juracy Daisy Marchese)
Ow! Belo texto!
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