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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Apelidos: dupla identidade, Martha Medeiros

Os apelidos são uma maneira poderosa de botar as pessoas nos seus devidos lugares. Essa frase é da escritora Doris Lessing, e chamou minha atenção porque diz justamente o contrário do eu sempre pensei de apelidos. Sempre achei que fossem um carinho, um atalho para a intimidade, ou ao menos um meio mais rápido de chamar alguém: em vez de João Carlos, Joca; em vez de Maria Aparecida, Cida; em vez Adalberto, Beto. Nenhuma má intenção. 
O que Doris Lessing quis lembrar é que apelidos nem sempre são afetuosos. A maioria dos apelidos nascem na infância e são dados por outras crianças que, como todos sabem, de anjo só têm a cara. Crianças adoram pegar no pé das outras, e á aí que começa o batismo de fogo.
Uma banana-split todo dia na hora do recreio. Gordo. Vai ser Gordo o resto da vida, mesmo que venha a ser jóquei, faquir, homem elástico: vai morrer Gordo. 
Se for loiro, é Xuxa. Se a voz for engraçada, é Fanho. Se não for filho único, é Mano, Mana, Maninha. Irmãos de quem, eu conheço?
Fui colega de um cara bárbaro que se chamava Antônio, mas se alguém o chamasse assim, ele nem levantava os olhos. É o Verde. Uma mãe e um pai colocam um nome lindo no filho e não pega.
FHC, PC, ACM, agora é mania: transformar pessoas em siglas. Sorvetão era o apelido de uma paquita chamada Andrea: Sorvetão! E o Caetano Veloso inovou mais uma vez, registrando seus filhos como Zeca e Tom, que jamis serão apelidados. 
Muita gente, secretamente, detesta a própria alcunha, mas são obrigados a resignar-se, sob o risco de perder a identidade. Qual o nome do Bussunda, do Tiririca, do Chitãozinho e Xororó? Anônimos Cláudios, Ricardos e Fernandos. Nomes que só existem em cartório.
Apelido gruda, cola, vira marca registrada. Tem negro que é Alemão, tem grandão que é Fininho, tem careca que é Cabeleira, tem ateu que é Cristo, tem moreno que é Ruivo, tem albino que é Tição. Apelido não tem lógica. Tem história. 
Doris Lessing, quando criança, tinha um apelido para sua segunda personalidade: chamava si mesma de Tigger. Doris era um nome para consumo externo, para denominar a menina boazinha  que aparentava ser. Tigger era o que ela era em segredo: sarcástica, atrevida, extrovertida. Com esse depoimento, Doris Lessing mostrou a verdadeira utilidade dos apelidos, em vez daquela coisa antipática de "colocar as pessoas em seus devidos lugares". O bom do apelido é que ele nos dá a permissão para sermos vários: Afonso Henrique combina com gravata, mas Ique tem mais a ver com bermuda. Esta aí uma maneira sutil de legalizar o nosso outro eu, o que ficou sem registro.  

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Resenha - As avós, Doris Lessing

(As avós, Doris Lessing: tradução de Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 104 p.) 


“De ambos os lados de um pequeno promontório, pontilhado por cafés e restaurantes, havia um mar brincalhão porém digno, bem diferente do verdadeiro oceano que rugia e roncava do outro lado da bocejante baía cercada por rochas que todos chamavam – até nos mapas tinha este nome – de Dentes de Baxter.”

É nesse cenário paradisíaco que duas meninas novatas na escola se tornam grandes amigas. Uma amizade capaz de afetar gerações de duas famílias construídas sob um único alicerce. Lil (ou Liliane) é a mais delicada, de feições sublimes enquanto Roz (ou Rozeanne) esbanja um corpo mais maduro com uma visão irônica de tudo; se completam como gêmeas. Crescem juntas e seus atritos são marcados por suas diferenças físicas e com o passar do tempo a relação parece girar em torno de um “determinismo”, tudo que acontece a uma necessariamente vai acontecer à outra.   

Nas relações amorosas insatisfatórias, diante das constantes investidas ciumentas dos maridos, trazem novos ares na amizade. Os filhos são quase o espelho das mães, desbravam o mar como as pequenas fizeram anos atrás. A família, então, fica subordinada a Lil e Roz, são elas a base afetiva psicológica para enfrentar os percalços da separação e da perda. O que seria natural torna-se desconcertante.

Ian, filho de Lil, encontra conforto, diante da morte do pai, em Roz. Tom, contrário ao relacionamento do amigo com a mãe, procura os carinhos de Liliane. O absurdo foge aos desejos sexuais de ambas amigas que precisam viver sob segredo na comunidade local.

O espaço de tempo transcende as principais marcas da vivência de Roz e Lil. No épico, temo-las como heroínas, capazes de solucionar os atos que ameaçam a ordem estabelecida. Às demais narrativas podemos efetivar as imagens globais do texto e rememorar tudo que além do cenário paradisíaco desestruturam o ambiente.

As mulheres de Lessing em “As avós” são mulheres que conquistaram a liberdade de pensamento e expressão. A união dessas garotas é o ponto crucial no desenrolar de suas vidas, se entendem como ninguém mais. As relações com os filhos é resultado do carinho cultuado entre elas.

O breve romance de Doris Lessing entrega ao seu leitor um turbilhão de sentimentos que rompem com os todos os “dogmas” da literatura. Aqui os conceitos de amizade, família, amor transpassa o aceitável para, ainda sim, torna-se possível. A leitura é fluida em um enredo que busca desenvolver-se nos fatos, principalmente por buscar o cerne das questões abordadas.


Diante de todas as reviravoltas, seria o “mar brincalhão” nosso principal personagem?    

domingo, 16 de fevereiro de 2014

#1 - Diário de Leitura Doris Lessing, As avós




Publicado em 2003, o breve romance da vencedora do Nobel de Literatura, traz um enredo fluido e a sensação do leitor ao terminar é de ter lido um conto, esteticamente a se comparar talvez aos escritos de Alice Munro. A história gira em torno de quatro personagens que vivem paixões um tanto quanto desconcertantes. A narrativa é marcada por poucos diálogos e a autora empreende somente descrições detalhadas aos temas centrais.

A escrita de Lessing conquista seu leitor na primeira linha e o encaminha nos desafios psicológicos de seus personagens com maestria.


O livro foi traduzido pela Companhia das Letras e publicado em 2008 o Brasil, logo após o anúncio do grande prêmio da carreira de Doris Lessing.