Por Vinícius Mahier
Ronaldo era um
garoto instigante. Brincava, zombava de tudo o que achava comum. Gostava das
coisas ridículas, por não terem verdades incontroversas como razão. Elas eram
ridículas porque eram ridículas. Só. Não havia calhamaços de imperativos (todos
vagos) que pudessem explicá-las. Ronaldo gostava dos argumentos! Na falta
deles, das coisas ridículas. Odiava as estúpidas!
Ele, que ainda não
sabia ler, adorava os livros, suas ilustrações. Vivia brincando com as
palavras!
— As letras são tão
bonitas. Será que ainda serão assim quando eu entender o que elas querem me
dizer?
Gostava mais ainda das
histórias que seu avô, Fernando, lhe contava, a maioria adaptada dos clássicos
que lia, seus preferidos. Tantas foram as histórias de Machado de Assis, as
quais o avô sabia perfeitamente converter ao intelecto do neto, que Ronaldo já
compreendia o coração daquele autor mais do que muitos ensaístas. Fernando interpretava
os personagens dos romances, dos contos, no seu modo coloquial, e o garoto se
encantava, se emocionava, ria. Não entendia bem a função psicológica das
histórias, mas, mesmo assim, se divertia plenamente com elas. Como riu da
Igreja do Diabo! Como riu!
— Coitado do Diabo!
— E bem feito
também. Quis pensar pelos homens. Não se pode pensar pelos homens!
— Conta mais, vô!
— Vou te contar uma
história do Monteiro Lobato, Ronaldo.
— Esse não! Gosto do
Machado de Assis!
Depois que Fernando
faleceu, só lhe restou as reminiscências desses instantes e os desenhos que
fazia das histórias, tentativas de estender o prazer que elas lhe davam. Falava
tanto em prazer e, muitas vezes, era censurado. Não compreendia.
— Por que essa
palavra é proibida? Deus não sente prazer? — se indagava, sempre que alguém
asseverava em Seu nome. — Claro que sente... Vovô no céu contando histórias e Ele
rindo do Diabo!
— Não repita esse
nome!
— Mas... que mal
tem uma palavra?
Questionava tudo, todos,
para o desespero incontrolável dos pais. Vizinhos, amigos, o padre! Meu Deus,
questionar um padre! Mas Ronaldo, que sempre o respeitou e o considerava muito
inteligente, não conseguia concordar com tudo o que ele pregava na missa! Um
dia, foi falar-lhe a sós. O padre ficou impressionado com a inteligência do
garoto, mas, por obediência ao código, acabou advertindo-o aos pais, que se
envergonharam do filho pecador.
Resolveram então,
sobretudo a mãe, que já era hora de o garoto frequentar uma escola. Tornar-se-ia
inteligente, culto, respeitável. Largaria de tolices e de inconveniências. Era
esse o possível futuro para Ronaldo: tornar-se um doutor! Ou, realistas como
eram seus pais, ao menos, deixaria de inutilidades. Afinal, antes de tudo, o
diploma. Talvez, um dia, a formação.
Matricularam-no. E,
ao primeiro dia de aula, o menino foi, contrariado. Levava na mochila várias
ferramentas escolares e, escondido, um pouco de sonho próprio. Da aula, o que
mais gostava era a janela! Mas não podia contemplá-la por muito tempo. Era
preciso estar atento ao professor (este, sim, atento à janela!).
Dona Cássia, a mãe
de Ronaldo, estava nas nuvens. Tinha um filho estudante e disciplinado! Seu
orgulho em matéria. Vizinhos, amigos, o padre. Meu Deus, o padre agora o
elogiava, passava a mão sobre os cabelos e dizia: "Bom garoto! Continue
firme nos estudos... Você vai longe!" Porém, no íntimo de si, já não
notava nele aquela possível genialidade que o espantou quando o ouviu pela primeira
vez. Contudo, estava orgulhoso. Tinha de estar.
Ronaldo cresceu. E
Dona Cássia sacralizava-o aos outros. Para todas as amigas falava do seu
sucesso. Ele, antes compelido, menosprezado, criticado, tornou-se o melhor
aluno da classe! Sabia toda a tabuada de cor, tantas fórmulas. Não se
questionava. Olhava para as coisas e não sentia qualquer filosofia nelas.
Odiava as ridículas! E defendia, com todo entusiasmo, algumas estúpidas.
E assim foi levando
a vida, sob o método de ensino que o fazia regredir. Era ingênuo e não soube,
no início, discernir o que era realmente bom à sua vida. Agora lia os clássicos,
com data marcada! E Dona Cássia suspirava, cheia de razão.
Um dia, porém, Ronaldo
chegou da escola abatido, sobressaltado. Foi ao quarto sem dizer palavra a
ninguém. Joaquim, como não se preocupava muito com o estado emocional do filho,
apenas com o resultado de suas avaliações, estava mais angustiado com a demora
do bolo no forno. Dona Cássia, sempre mais emotiva, preocupou-se com o bolo,
claro, mas depois de confeitado, correu, aflita, ao quarto. Nunca o vira
daquela maneira, tão transtornado. O que teria lhe acontecido? Brigado com
algum colega? Caído em alguma rua? Como lhe afligia essas preocupações menores!
Estava tremendo,
horrorizado. Chegava até a gemer! Parecia que fora submetido a cenas de
tortura. Obrigado a resistir heroicamente a caprichos imbecis de déspotas
ultrapassados. Estava lá, exilado num canto, com uma foto do avô falecido. E
chorava, tremia! A mãe, desesperada, correu para perto dele, também chorando.
Abraçou-o, como há anos não fazia.
— Filho, o que foi,
meu filho? O que houve?!
— Estou com medo,
mãe. Estou com muito medo!
— Medo do que,
filho?
— Do Machado de
Assis!
Excelente texto, Vinicius Mahier! Fez-me lembrar da leitura do conto de Machado de Assis.
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