sábado, 11 de janeiro de 2014

[Umas e outras] Você vai longe!



Por Vinícius Mahier



Ronaldo era um garoto instigante. Brincava, zombava de tudo o que achava comum. Gostava das coisas ridículas, por não terem verdades incontroversas como razão. Elas eram ridículas porque eram ridículas. Só. Não havia calhamaços de imperativos (todos vagos) que pudessem explicá-las. Ronaldo gostava dos argumentos! Na falta deles, das coisas ridículas. Odiava as estúpidas!
Ele, que ainda não sabia ler, adorava os livros, suas ilustrações. Vivia brincando com as palavras!
— As letras são tão bonitas. Será que ainda serão assim quando eu entender o que elas querem me dizer?
Gostava mais ainda das histórias que seu avô, Fernando, lhe contava, a maioria adaptada dos clássicos que lia, seus preferidos. Tantas foram as histórias de Machado de Assis, as quais o avô sabia perfeitamente converter ao intelecto do neto, que Ronaldo já compreendia o coração daquele autor mais do que muitos ensaístas. Fernando interpretava os personagens dos romances, dos contos, no seu modo coloquial, e o garoto se encantava, se emocionava, ria. Não entendia bem a função psicológica das histórias, mas, mesmo assim, se divertia plenamente com elas. Como riu da Igreja do Diabo! Como riu!
— Coitado do Diabo!
— E bem feito também. Quis pensar pelos homens. Não se pode pensar pelos homens!
— Conta mais, vô!
— Vou te contar uma história do Monteiro Lobato, Ronaldo.
— Esse não! Gosto do Machado de Assis!
Depois que Fernando faleceu, só lhe restou as reminiscências desses instantes e os desenhos que fazia das histórias, tentativas de estender o prazer que elas lhe davam. Falava tanto em prazer e, muitas vezes, era censurado. Não compreendia.
— Por que essa palavra é proibida? Deus não sente prazer? — se indagava, sempre que alguém asseverava em Seu nome. — Claro que sente... Vovô no céu contando histórias e Ele rindo do Diabo!
— Não repita esse nome!
— Mas... que mal tem uma palavra?
Questionava tudo, todos, para o desespero incontrolável dos pais. Vizinhos, amigos, o padre! Meu Deus, questionar um padre! Mas Ronaldo, que sempre o respeitou e o considerava muito inteligente, não conseguia concordar com tudo o que ele pregava na missa! Um dia, foi falar-lhe a sós. O padre ficou impressionado com a inteligência do garoto, mas, por obediência ao código, acabou advertindo-o aos pais, que se envergonharam do filho pecador.
Resolveram então, sobretudo a mãe, que já era hora de o garoto frequentar uma escola. Tornar-se-ia inteligente, culto, respeitável. Largaria de tolices e de inconveniências. Era esse o possível futuro para Ronaldo: tornar-se um doutor! Ou, realistas como eram seus pais, ao menos, deixaria de inutilidades. Afinal, antes de tudo, o diploma. Talvez, um dia, a formação.
Matricularam-no. E, ao primeiro dia de aula, o menino foi, contrariado. Levava na mochila várias ferramentas escolares e, escondido, um pouco de sonho próprio. Da aula, o que mais gostava era a janela! Mas não podia contemplá-la por muito tempo. Era preciso estar atento ao professor (este, sim, atento à janela!).
Dona Cássia, a mãe de Ronaldo, estava nas nuvens. Tinha um filho estudante e disciplinado! Seu orgulho em matéria. Vizinhos, amigos, o padre. Meu Deus, o padre agora o elogiava, passava a mão sobre os cabelos e dizia: "Bom garoto! Continue firme nos estudos... Você vai longe!" Porém, no íntimo de si, já não notava nele aquela possível genialidade que o espantou quando o ouviu pela primeira vez. Contudo, estava orgulhoso. Tinha de estar.
Ronaldo cresceu. E Dona Cássia sacralizava-o aos outros. Para todas as amigas falava do seu sucesso. Ele, antes compelido, menosprezado, criticado, tornou-se o melhor aluno da classe! Sabia toda a tabuada de cor, tantas fórmulas. Não se questionava. Olhava para as coisas e não sentia qualquer filosofia nelas. Odiava as ridículas! E defendia, com todo entusiasmo, algumas estúpidas.
E assim foi levando a vida, sob o método de ensino que o fazia regredir. Era ingênuo e não soube, no início, discernir o que era realmente bom à sua vida. Agora lia os clássicos, com data marcada! E Dona Cássia suspirava, cheia de razão.
Um dia, porém, Ronaldo chegou da escola abatido, sobressaltado. Foi ao quarto sem dizer palavra a ninguém. Joaquim, como não se preocupava muito com o estado emocional do filho, apenas com o resultado de suas avaliações, estava mais angustiado com a demora do bolo no forno. Dona Cássia, sempre mais emotiva, preocupou-se com o bolo, claro, mas depois de confeitado, correu, aflita, ao quarto. Nunca o vira daquela maneira, tão transtornado. O que teria lhe acontecido? Brigado com algum colega? Caído em alguma rua? Como lhe afligia essas preocupações menores!
Estava tremendo, horrorizado. Chegava até a gemer! Parecia que fora submetido a cenas de tortura. Obrigado a resistir heroicamente a caprichos imbecis de déspotas ultrapassados. Estava lá, exilado num canto, com uma foto do avô falecido. E chorava, tremia! A mãe, desesperada, correu para perto dele, também chorando. Abraçou-o, como há anos não fazia.
— Filho, o que foi, meu filho? O que houve?!
— Estou com medo, mãe. Estou com muito medo!
— Medo do que, filho?
— Do Machado de Assis!




Um comentário:

  1. Excelente texto, Vinicius Mahier! Fez-me lembrar da leitura do conto de Machado de Assis.

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