sábado, 1 de fevereiro de 2014

[Umas e outras] Conto



01
                  Preciso de um narrador. Preciso de alguém que saiba contar uma história. Uma história de aventura, que é o que pretendo neste livro. Contar uma história de aventura, estampar meu nome alheio ao lado de camisinhas de mercado. Ao lado da fertilidade.
                  Preciso de um personagem.
                  — Puta que pariu.
                  Preciso de tudo para começar. Mas a vida não é um naufrágio. Viver... Por mais que eu tenha naufragado, Ana, a vida não é um naufrágio. Mas você, ó ninfa, não é um dos meus personagens. Então fume... fume... fume...

02

                 Teu suicídio. Capítulo chave, vagabunda. Necessito de você. Eu tenho um romance pra começar, embora já o tenha comprado, ao lado da esterilidade. Mas não importa. Bentinho começou o dele na última frase. Nada. Teu suicídio me elabora. Talvez, e é isso que me assombra no teu suicídio, eu tenha morrido antes.

03

                 Não quero representações, te ordeno, caos. Não quero. Preciso de um narrador que não me represente. Sou caos, mais parecido com outro caos do que com o que me reproduz, ou me ordena, gênesis. Não ordeno caos nenhum, não crio nada que não seja caos, um caos que não se configura como gênesis. O caos total, sem solidão. Ana, eu necessito de você. Preciso, preciso de um personagem.
               — Preciso de um narrador.

04

               ... na fumaça, a fronteira ao nosso espectro. Fume, então.

05

               Esqueça esta história de caos. Eu quero contar histórias, Ana, eu quero uma síntese nas correntes: que me arrasta... que me arrasta... Te mando cartas. Me dou um tiro na boca, agora preparada para o beijo úmido. Atiro, qualquer coisa. Escondo os poemas debaixo da língua ensanguentada, com impressões digitais das tuas cinzas. Ana, por que não desconcentra? Se me ama, já sabe. Esquece. Preciso.
               — Travessão.

(29.01.2014, São João del-Rei)

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