Mais do que a
humildade de ler Shakespeare no original, considerando-se incapaz de
compreendê-lo verdadeiramente, devido ao peso de sua obra, é a humildade de ler
uma tradução, sem subestimá-la como algo inútil e malogrado, embora seja, para
muitas pessoas (e o inglês como segunda língua ainda é uma realidade da
minoria, ao menos no Brasil), a única forma de contato com algum autor
estrangeiro.
E eu não sei
inglês. Antes de começar a ler suas peças, o pensamento de que lia uma fraude
inferior me apoquentava o espírito e, depois de inúmeras idas a bibliotecas e
sebos, pesquisas por traduções, acabei entendendo que, se eu não mudasse minha
concepção sobre a importância (e, no meu caso, inevitabilidade) da tradução,
não poderia sequer lê-lo no original, caso soubesse sua língua. Não poderia
continuar blasonando a literatura como se eu a entendesse em seus aspectos
realmente maduros. Talvez sequer poderia ler uma obra de massa escrita em
língua brasileira. O problema não era o texto, a insatisfação que me adivinha a
cada peça traduzida que eu encontrava e descartava por considerá-la antiga,
pretensiosa, vã, desnecessária: o problema era a minha mentalidade acéfala e
preguiçosa. Preconceituosa.
Em um de seus
ensaios, (Goethe, o sábio”), T.S. Eliot é categórico: “Pois se é verdade que o
total desconhecimento da língua limita agudamente nossa apreciação desse poeta,
isso não serve de desculpa para que ignoremos por completo sua obra”. E afirma
que o essencial de poetas como Shakespeare permanece, devido a sua força
universal. Compreendendo finalmente isso, e confesso que o desafio me trouxe
uma forte crise de consciência e criativa, responsável por um amadurecimento
crítico e literário, consegui terminar uma obra do bardo sem esbarrar, não
totalmente, no preconceito de que aquilo era uma espécie de antishakesspeare,
uma falsificação barata, e que não estava à altura do tempo que eu estava
gastando com ela (embora eu não esteja à altura sequer das notas de rodapé das
edições originais). Em suma, li Shakespeare, com ajuda comercial de Millôr
Fernandes.
Lear, rei da
Grã-Bretanha, decide dividir o reino entre suas três filhas, pedindo antes, no
entanto, que elas lhe descreva o quanto o amam e lhe são gratas. Goneril e
Regana fazem um discurso impressionante, no qual exaltam as qualidades do pai e
o respeito que possuem por ele; a terceira filha, Cordélia, por ter consciência
de que não conseguirá transcrever para as palavras o seu real sentimento pelo
pai, prefere o silêncio, o qual o rei toma por severo insulto, interpretando-o
como uma afirmação clara de falta de amor da filha. Ele, portando, divide sua
fortuna entre as duas filhas mais velhas; e Cordélia, expulsa, mesmo sem dote,
é pedida em casamento pelo rei da França. O duque de Kent intercede por
Cordélia e acaba banido também, voltando ao reino disfarçado, para ajudar o rei
(interessante ressaltar que a técnica de travestir personagens é muito
recorrente na obra shakespeariana).
Há ainda a
história do conde de Glócester, traído por seu filho Edmundo, bastardo, que
conspira o pai contra o irmão Edgar, filho legítimo, que acaba tendo que fugir
e se disfarçar de mendigo. Edmundo também trama contra o pai, que acaba tendo
os olhos arrancados pelo duque da Cornualha, marido de Regana, que, assim como
Goneril, acaba se envolvendo amorosamente com Edmundo e, juntas, passam a
maltratar o pai e cortar-lhe gastos, como, por exemplo, metade do seu
séquito. Expulso de casa, em companhia com o seu Bobo e Kent, Lear, após sofrer
uma grande tempestade, é acolhido por Glócester, quando ainda não havia sido
traído pelo filho.
Não sou
resenhista. Cabe-me aqui, portanto, apresentar as obras do poeta e minhas
impressões sobre a leitura. Quanto a esta primeira, realmente impressiona a
força dramática e poética do bardo. Ele consegue articular de forma magistral
seus personagens e suas falas muitas vezes são verdadeiros poemas, assim como
são (e sem fronteiras aqui, por favor) dramas exemplares. Shakespeare não
envelheceu e dificilmente envelhecerá. É claro que, como toda força humana
criadora, estava passível de erros e errou, o que não diminui em nada a sua
obra.
Abaixo alguns
trechos que destaquei da minha primeira leitura sobre a obra, cuja releitura
será a última obra do desafio (toda leitura é uma escrita e, embora ainda seja
Shakespeare, embora ainda seja eu, é, acima de tudo, um processo, dinâmico e
diferente).
"CORDÉLIA:
(à parte) E então, pobre Cordélia? Mas, contudo, não sei; pois teu amor, tenho
certeza, é mais profundo do que tua fala"
"CORDÉLIA:
Meu bom senhor, tu me geraste, me educaste, amaste. Retribuo cumprindo o meu
dever de obedecer-te, honrar-te, e amar-te acima de todas as coisas. Mas para
que minhas irmãs têm os maridos se afirmam que amam unicamente a ti? Creio que,
ao me casar, o homem cuja mão receber minha honra deverá levar também metade do
meu amor, dos meus deveres e cuidados. Jamais me casarei com o minhas irmãs,
para continuar a amar meu pai - unicamente"
"GONERIL:
Tu vês como é cheia de mudanças a velhice. A experiência que tivemos foi bem
grave; ele sempre gostou mais de nossa irmã; e a falta de critério com que a
repudiou agora se mostrou de maneira bem grosseira.
REGANA: É um
mal próprio da idade; aliás, nunca teve um maior conhecimento de si próprio.
GONERIL: Mesmo
no tempo melhor e mais saudável de sua vida sempre foi um imprudente: devemos
esperar de sua velhice não apenas os defeitos há muito tempo adquiridos e
entranhados mas também a impertinência e os caprichos que chegam com os anos de
senilidade e doença"
"EDMUNDO:
Eis a sublime estupidez do mundo; quando nossa fortuna está abalada – muitas
vezes pelos excessos de nossos próprios atos – culpamos o sol, a lua e as
estrelas pelos nossos desastres; como se fôssemos canalhas por necessidade,
idiotas por influência celeste; escroques, ladrões e traidores por comando do
zodíaco; bêbados, mentirosos e adúlteros por forçada obediência a determinações
dos planetas; como se toda a perversidade que há em nós fosse pura instigação
divina. É a admirável desculpa do homem devasso – responsabiliza uma estrela
por sua devassidão. Meu pai se entendeu com minha mãe sob a Cauda do Dragão e
vim ao mundo sob a Ursa Maior; portanto devo ser lascivo e perverso. Bah! Eu
seria o que sou, mesmo que a estrela mais virginal do firmamento tivesse
iluminado a minha bastardia"
"KENT: Se
eu também conseguir modificar os sons de minha voz, alterando o meu modo de
falar, a minha boa intenção me fará realizar plenamente o objetivo que me levou
a transformar meu aspecto. Agora, banido Kent, se puderes servir a quem te
condenou – e espero que possas – o teu senhor, a quem amas, te encontrará
pronto pra tudo".
"BOBO: A
verdade é um cachorro que tem de ficar preso no canil. E deve ser posto fora de
casa a chicotadas quando madame Cadela quer ficar calmamente fedendo junto ao
fogo.
LEAR:
Pestilência irritante!
BOBO:
Camarada, vou te ensinar uns provérbios.
LEAR: Ensina.
BOBO: Presta
atenção, titio:
Mostra menos
os teus bens
No que sabes
não te expandas
Empresta menos
do que tens
Cavalga mais
do que andas
Ouve na justa
medida
Só arrisca o
que não importa
Larga amantes
e bebida
Tranca bem a
tua porta:
E terás em
cada vintena
Mais que o
dobro da dezena."
KENT: Isso não
é nada, Bobo.
BOBO: Então é
como a voz de um advogado sem honorários – também não me deram nada pelo que
falei. O senhor não sabe fazer nada com o nada, tiozinho?
LEAR: Claro
que não, rapaz; do nada não sai nada.
BOBO: (A
Kent.) Por favor, diz a ele que isso é tudo que lhe rendem as terras que não
tem – ele não vai acreditar num Bobo".
LEAR: Estás me
chamando de bobo, Bobo?
BOBO: Você
abriu mão de todos os outros títulos; esse é de nascença".
"LEAR:
Tem alguém aqui que me conheça? Este aqui não é Lear. Lear anda desse jeito?
Fala assim? Onde estão os olhos dele? Ou sua inteligência enfraqueceu ou tem o
discernimento em letargia... Ah! Estou acordado? Não pode ser. Alguém é capaz
de dizer quem eu sou?
BOBO: A sombra
de Lear."
"(Outro
local do descampado. A tempestade continua. Entram Lear e o Bobo.)
LEAR: Sopra,
vento, até arrebentar tuas bochechas! Ruge, sopra! Cataratas e trombas do céu,
jorrem torrentes até fazer submergir os campanários e afogar os galos de suas
torres. Relâmpagos de enxofre, mais rápidos que o pensamento, precursores dos
raios que estraçalham o carvalho, queimem minha cabeça branca. E tu, trovão que
abala o universo, achata para sempre a grossa redondez do mundo! Quebra os
moldes da natureza e destrói de uma vez por todas as sementes que geram a
humanidade ingrata!
BOBO: Oh,
titio, a água benta da bajulação numa casa bem seca é melhor do que esta água
de chuva a céu aberto. Entra, titio bonzinho, e pede a bênção a tuas filhas.
Esta noite não tem pena nem dos bobos nem dos sábios.
LEAR: Arrota
as tuas entranhas! Vomita, fogo! Alaga, chuva! A chuva, o vento, o trovão e o
fogo não são minhas filhas. Elementos, eu não os acuso de ingratidão; nunca
lhes dei reinos ou chamei de filhos, nunca me deveram obediência alguma.
Portanto, podem despejar sobre mim o horror do seu arbítrio. Olhem, aqui estou
eu, seu escravo, um pobre velho, débil, doente, desprezado. Mas continuo a
chamá-los de cúmplices subservientes que se uniram a minhas duas desgraçadas
filhas para lançar os batalhões do céu contra esta cabeça tão velha e tão
branca. Oh! Oh! É revoltante!"
"LEAR:
Lê.
GLOUCESTER:
Como, com o buraco das órbitas?
LEAR: Oh, oh.
O que é que estás dizendo? Sem olhos na cara nem dinheiro na bolsa? O vazio da
cara é mais caro, o da bolsa é mais claro. Mesmo assim, vês como vai indo o
mundo?
GLOUCESTER: Um
mundo sentido.
LEAR: Como,
estás louco? Mesmo sem olhos um homem pode ver como anda o mundo. Olha com as
orelhas. Vê como aquele juiz ofende aquele humilde ladrão. Escuta com o ouvido,
troca os dois de lugar, como pedras nas mãos; qual o juiz, qual o ladrão? Já
viste um cão da roça ladrar prum miserável?
GLOUCESTER:
Já, meu senhor.
LEAR: E o
pobre diabo correr do vira-latas? Pois tens aí a imponente imagem da
autoridade; até um vira-lata é obedecido quando ocupa um cargo. Oficial
velhaco, suspende tua mão ensangüentada! Por que chicoteias essa prostituta?
Desnuda tuas próprias costas. Pois ardes de desejo de cometer com ela o ato
pelo qual a chicoteias. O usurário enforca o devedor. Os buracos de uma roupa esfarrapada
não conseguem esconder o menor vício; mas as togas e os mantos de púrpura
escondem tudo. Cobre o crime com placas de ouro e, por mais forte que seja a
lança da justiça, se quebra inofensiva. Um crime coberto de trapos a palha de
um pigmeu o atravessa. Não há ninguém culpado, ninguém – digo, ninguém! Eu me
responsabilizo. Podes acreditar em mim, amigo, tenho o poder para lacrar os
lábios do acusador. Arranja olhos de vidro e, como um político rasteiro, finge
ver aquilo que não vês. Vamos, vamos, vamos, vamos! Tirem-me as botas. Mais
força. Mais força! Assim.
EDGAR: (À
parte.) Oh, que mistura de bom senso e de absurdo. A razão na loucura".