domingo, 2 de março de 2014

[Umas e outras] Poema morto



Por Vinícius Mahier

I

Vejo as pessoas e elas não me veem.
Parecem-me, no entanto, alguns rebanhos:
Se lhes rogo, me afagam com gadanhos;
Se agonizam, Deus fazem-me e me creem!

Chacino-as, com os olhos! Ser celeste?
Fraca auréola, exibindo um mero status!
Calar-me por temores putrefatos?
Preservo as mágoas com que a Dor me veste!

Rancor, se não é belo, é natural!
Que humano vive o afeto o tempo todo?
Antes mostrar-me — honesto! — neste lodo
A fingir-me um demônio angelical!

De que inferno o cinismo nos surgiu?
Qual veneno traz a cura ao hediondo?
Só me resta a revolta e ao seu estrondo
Praguejo o homem fosco e sem perfil!

São as pessoas — mais canibalismo! —
Juntas à mesa, sem sabor algum.
Prossigo literário em meu jejum
Vendo-as banquete de um mútuo eufemismo!

Garantem que o infortúnio de um amigo
Não se pode amparar! Mas se recebem
Insultos, todo o fel do mundo bebem
Para o Ego vomitá-lo no inimigo!

Tiragens esgotadas de uns panfletos
De estampas proclamando um cão poeta
Que esboça a retidão como abjeta
E a roga, heroicamente, em seus sonetos!

Deus ruma à gente e vê grades nos templos
Dos vários missionários marinheiros,
Que enganam seus devotos verdadeiros,
Sagrando as próprias manchas como exemplos!

Soberbas cerimônias... — maculadas! —
No altar brilhando o corpo do interesse
Como se um terço caro algo valesse
A Deus, que permanece nas escadas!

Prefiro não rezar. Sou-lhe um herege?
Louvar apenas por temor à fúria
Divina?! É-me no mínimo uma injúria
Erguer as mãos, enquanto o chão me rege!

Meu nome berram dentro dos seus vícios,
Vários covardes, em hercúlea fama.
Se algum dia eu benzer-me nessa lama,
Hei de ser Santo... — e não serei Vinícius!

É pena este conforto ser quimera
De um peito que se esquece da agonia
Ao deitar-se no colo da poesia:
Menino em uma breve primavera!

II

Frente ao espelho, ponho-me, de novo,
E sofro a pretensão do meu agora:
Um ser que a própria vida não melhora
E espera melhorar todo este povo!

De amores breves sou... mas não por gosto!
Com o tempo, suicida a amada eterna,
Que se entrega aos delírios da taverna,
E nasce a meretriz de infame rosto!

Ao meretrício vil do dia-a-dia
Ela se enfeita... — de pudor se cobre! —,
E faz das larvas uma imagem nobre
E de si mesma a mais vulgar harpia!

Outra esposa a lealdade desaponta
Nua às curvas do amante e da lascívia.
A traição..., o marido revive-a
E, triste, às curvas da amante se apronta!

De amores santos sou... e sou de carne!
Nem por isso atraiçoo quem me ama.
É imundo quem por remissão se acama
Esperando que o céu todo lhe encarne!

Nem falo que no amor sempre há mentira!
Minha cólera é a quem o mancha e o ostenta,
Enquanto amputa a própria mão, nojenta,
Para nunca estendê-la a quem expira!

Coloco, muitas vezes, o meu pulso
Na ceifa do escapar-me a grande ideia
De como aniquilar esta plateia
Que faz do palco um circo-show insulso!

Lacera-me pensar como sequer
A infância está abrigada deste estupro:
— Se a foda ainda não posso, então a supro
Sendo, nesta orgia, um virgem voyeur!

Consterno o meu olhar, que não se queixa...
Aguarda o que reserva-lhe esta gente!
Torná-lo uma desonra sorridente?
Entrego-o ao lhano colo de uma endecha!

III

No desespero ao mais cruel enigma,
— Onde agoniza a nossa complacência?
Tombada a tiros pela Inteligência! —
Só reencontrei o assombro ao meu estigma!

Mascaram-se aos lamentos de um cortejo
Abutres foliões, num falso luto.
É o caixão — de outro Herói, subproduto... —
O abre-alas deste fúlgido festejo!

“Atiras chaga em mim?!" — protesta o solo
Embravecido com medonha cena...
"Com teus cuspes vexava-me, sem pena!,
E agora cuspe deitas no meu colo?

"Bons vermes, protetores digníssimos,
Também injustiçados pelo homem,
Que apenas pra salvarem-me o carcomem
Qual fúrias, guardiões, a mim Altíssimos".

E a humanidade segue no caminho
Que a leva ao abismo da visão mais crua
De que esporra esquecida continua,
Rala e estéril, ultrajando o próprio ninho!

Do que reclamo?! Em minha casa há raça!
E até silêncio, narrativa leve...
Mas o abrigo do meu teto, breve,
Não impede que o vão me contrafaça!

Vejo as pessoas! — não as quero em mim,
Mesmo que à vida nós iguais sejamos!
Findar-me, ao menos, longe dos seus ramos
É o que desejo, quando eu for, enfim!

Mundo patife! — que a ninguém acalma —
São nos versos que encontro algum conforto.
Fechando a tumba do poema morto,
Devolvo o fato à minha humana alma!

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